domingo, 3 de outubro de 2010

la liberté


Outro dia, revendo o documentário A Ilha das Flores, de Jorge Furtado, deparei-me com a seguinte frase de Cecília Meireles:

Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.

Parei alguns minutos para refletir.

Indaguei-me sobre o que seria liberdade para mim, e deste modo, se sou livre (no dicionário, livre “é o estado daquele que tem liberdade”). Mas retomando o conceito de Meireles, as coisas ainda não estavam tão claras para mim.
De antemão liguei o termo às condições física e psíquica de um indivíduo, em seus diversos níveis. Sendo assim, Ramón Sampedro, personagem do filme Mar Adentro (de Alejandro Amenábar), não é livre. Muito menos alguém com morte cerebral.
Em seguida, associei liberdade à ideologia. Lembrei-me imediatamente de Guerreiro Ramos, que dizia que

“não dispõe o indivíduo do piso firme necessário para que sua identidade se desenvolva. Ele é, antes, compelido a enfrentar processos e mudanças que constituem derivativos de um movimento auto-induzido e indefinido do agregado social. O homem moderno é o tolo enganado por uma fé mal colocada. Os traços básicos da síndrome do comportamento constituem o credo não enunciado de instituições e organizações que funcionam na sociedade centrada no mercado. Não constitui mero incidente o fato de que, em toda sociedade em que o mercado se transformou em agencia cêntrica da influencia social, os laços comunitários e os traços culturais específicos são solapados ou mesmo destruídos. O mercado tende a transformar-se na força modeladora da sociedade como um todo. Conseqüência da ação da política cognitiva1.

Nós, seres humanos contemporâneos, assimilamos (goela abaixo) uma filosofia de vida de mercado. Para obtermos respeito em nossa sociedade, temos que ser produtivos, temos que ser “bons em alguma coisa”.
Existem modelos que melhoram nossa performance, que nos tornam mais eficientes: são os modelos de especialização. Adam Smith já fazia defesa de seu uso no século XVIII. Ele dizia que o país deveria enfatizar esmagadoramente na produção do recurso que tivesse maior potencial: se o Brasil possui excedente de recurso natural, não seria lógico (em termos de custo) produzir tecnologia. Se essa idéia fosse incontestável, estaríamos fadados às injustiças provocadas pelas trocas desiguais no comércio internacional. Outra crítica que se faz a esta lógica é referente ao risco. No caso de uma diversificação dos bens produzidos, o risco de quebradeira é bem menor.
Isto nos leva a outras perspectivas, postas para discussão: o não-foco e o foco espontâneo, não impostos por uma ideologia de mercado.  Minha função utilidade ou simplesmente meu nível de satisfação pode ser maior, por exemplo, quando rompo com a sociedade e não mais curso graduações e pós-graduações porque o mercado impõe ou exige; pode ser maior também no caso em que sigo este caminho porque tenho verdadeira vocação. Mas o que se vê é justamente situação que não estas duas: o número de pessoas com acesso ao ensino superior cresce, o que a priori seria fantástico. No entanto, esse dado não remete melhoria qualitativa. O que quero explicitar é que o modo de vida com foco é verdadeiramente benéfico para o espírito, nossa essência, nos casos em que a busca pelo foco é motivado por inquietude interior. Caso contrário, se o foco não pertence ao seu estilo de vida – ele é imposto pelo mercado e pela sociedade - entregue-se ao generalismo e seja feliz. Garante sua sobrevivência de forma lícita, através de qualquer ocupação, e fuja da condição de “alegre detentor de emprego, vitima patológica da sociedade centrada no mercado”. Ah! Não esquece de assistir ao filme “Into The Wild”.

¹ Política cognitiva consiste no uso consciente ou inconsciente de uma linguagem distorcida, cuja finalidade é levar as pessoas a interpretarem a realidade em termos adequados aos interesses dos agentes diretos e/ou indiretos de tal distorção.


2 comentários:

  1. Legal, cara! É aquela coisa que conversamos: vivemos na lógica da reitificação, onde somos objetos e quase tudo se resume a oferta demanda: desde a valoração de nossas atividades profissionais - seja ela qual for - até nossas investidas amorosas. Um quase completo "just business". Legal o texto, muito lúcido e esclarecedor!

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